SÃO PAULO E OS PEDESTRES
Andre Leal
Postado em:16 de Setembro de 2011
Muito tem sido falado na mídia a respeito da campanha que a CET (Cia. de
Engenharia de Tráfego) de São Paulo vem fazendo há cerca de três meses em prol
do respeito aos pedestres no trânsito da capital paulista. Nada mais humano,
mas que vem tarde e apenas mascara que a cidade capitalista é construída para o
carro – transporte individual e apropriação indevida do espaço público, como
sempre afirma Paulo Mendes da Rocha, por exemplo. Nada mais falacioso poderia
ser também a ideia de um “rodoviarismo humanista”, como seguradoras querem nos
vender em suas campanhas publicitárias (exemplo é “Trânsito mais gentil” da
Porto Seguro). O transporte individual exacerba o individualismo e a noção de
propriedade privada do espaço urbano, estimulando práticas tudo menos
humanistas, mesmo naqueles que sabem dos males e das necessidades de se ter um
“trânsito mais gentil”. [...]
Desde as grandes reformas do século XIX a cidade passou a ser construída
com objetivos diferentes: em um primeiro momento era o controle das revoltas
como a Comuna de Paris que os urbanistas queriam estabelecer com as grandes
avenidas que abriram em meio à cidade medieval de Paris. Já no século XX, porém
a história mudou e a cidade passou a ter sua construção motivada pelo princípio
de desafogar a circulação dos automóveis individuais. Se Walter Benjamin via na
poesia de Baudelaire os indícios da transformação que Haussmann promovera em
Paris e definia sua visão sobre a modernidade instrumental, ele não poderia
imaginar o que estaria por vir. O contato do flâneur[1] com
os estranhos na multidão de uma metrópole e a perda de referências do habitante
em relação à sua cidade natal marcou a obra de Benjamin, levando-o a associar a
experiência do cidadão urbano moderno ao que ele chamou de perda da
experiência. A cidade europeia, no entanto, conseguiu manter-se como espaço
propício à “experiência” do flâneur e
em sua maioria equilibra com considerável êxito a relação entre o transporte
individual e o coletivo. Claro que nos EUA a situação é muito diferente:
cidades como Los Angeles e Miami sofrem com os engarrafamentos e a falta de
transporte coletivo abrangente, e é de onde os visionários prefeitos de São
Paulo tiraram ideias que levaram à construção do famigerado Elevado Costa e Silva
– o Minhocão, nome mais palatável do que o do general que foi
homenageado por Paulo Maluf, aliás os três (viaduto, Maluf e Costa e Silva) se
merecem imensamente!
De qualquer forma, uma cidade como Brasília, construída tendo em conta
“a tecnologia de plantão da época”, como diria Alexandre Delijaicov, é uma
cidade extremamente rodoviarista. No começo da década passada, porém, a
administração de Cristóvam Buarque conseguiu incentivar o respeito ao pedestre
estabelecendo uma nova cultura em meio às superquadras de Lucio Costa. O mesmo
se deu na Colômbia, onde cidades como Bogotá e Medellín se tornaram referência
para diversos projetos urbanos. Lá a prefeitura associou-se a grandes empresas
por meio da renúncia fiscal – instrumento célebre dos tempos “pós-neoliberais”
– para construir escolas, bibliotecas, museus, corredores de ônibus e
teleféricos nas duas maiores cidades do país. A exemplo dos CEUs (Centro
Educacional Unificado), construídos em São Paulo pela administração Marta
Suplicy na década passada, as bibliotecas e escolas se tornaram um marco
arquitetônico em meio às favelas que há anos estavam à margem da cidade
“instituída”. Da mesma forma no Rio de Janeiro o teleférico do morro do Alemão
e o elevador do morro do Cantagalo estão tornando-se emblemas na paisagem da
cidade.
Essas ações, porém, escondem algo fundamental que está por trás da
lógica que rege a construção urbana nesse começo de século. Ao mesmo tempo em
que a CET realiza a campanha de “conscientização do motorista”, bilhões de reais
são anunciados para a construção de viadutos na cidade de São Paulo – isso sem
falar no bilhão e meio investidos na Marginal Tietê, ou “sarcófago do rio
Tietê”, se preferirem. Da mesma forma, essa semana foram inauguradas mais duas
estações da linha Amarela (linha 4) do Metrô paulistano, em obras desde 2004. [...] Não será muito tempo para só uma linha?
E é só a Cia. do Metrô abrir mão do controle da execução das obras para os
erros e acidentes acontecerem. A cratera da estação Pinheiros que abriu em 2007
por erro de análise do terreno marcou a região, tragando para dentro de si sete
pessoas e interditando 93 imóveis.
[...] O estímulo ao uso do espaço urbano pelos pedestres é fundamental
para a qualidade de vida de qualquer cidade. E isso passa não apenas pelo
respeito dos motoristas pela faixa de pedestre, mas também pela oferta de
transporte público de qualidade (e barato) e ainda outro ponto fundamental: o
bom estado das calçadas. Sendo sua construção e manutenção de responsabilidade
do proprietário e não da prefeitura o que acabamos encontrando na cidade é uma
colcha de retalhos e remendos e verdadeiras corridas de obstáculo para os
pedestres. Mais uma vez o poder público entrega a construção da cidade a
agentes privados. O resultado já conhecemos na forma da maior aglomeração
urbana do hemisfério que não oferece o mínimo de qualidade de vida para seus
habitantes.
Há pouco tempo atrás surgiu uma expressão interessante no site Carta
Maior em comentário sobre editorial da revista ultraliberal The Economist e que
foi seguida por outros como o sociólogo argentino Atílio Boron. O comentário da
Carta Maior era o de que em 1105 palavras do artigo sobre o aquecimento global
da revista não se mencionava nenhuma vez a palavra capitalismo; sugeriam
portanto um outro título ao editorial: Bem vindos ao Antropoceno: é o
capitalismo, estúpido! Sugiro então para a CET que sua campanha “Respeite o
pedestre” passe a chamar-se: Respeite o pedestre: é a cidade capitalista,
estúpido! E São Paulo pode ser considerada exemplo da cidade laisser
faire[2] capitalista.
Obtido em: Blog ARQtetônico. http://portalarquitetonico.com.br/e-a-cidade-capitalista-estupido/
Questões para a interpretação do texto. GABARITO:
- Qual a visão do autor sobre a cidade capitalista
e a mobilidade urbana?
A partir do século
XX, a cidade passou a ter sua construção motivada pelo princípio de desafogar a
circulação dos automóveis individuais; pouco se faz para a ampliação e melhoria
do transporte coletivo, com oferta de transporte público de qualidade (e
barato). Enquanto isso, as calçadas ficam em péssimas condições, dificultando
ou impedindo o acesso aos pedestres, sendo sua construção e manutenção de
responsabilidade do proprietário e não da prefeitura.
- O que o autor acredita ser a experiência de
um cidadão urbano moderno?
As cidades europeias ainda preservam condições equilibradas, permitindo
ao cidadão urbano usufruí-las. O mesmo não se dá em grandes cidades americanas
e brasileiras, com engarrafamentos e falta de transporte coletivo abrangente, onde
o contato do cidadão com estranhos na multidão e a perda de referências em
relação à sua cidade natal leva-o a uma perda de experiência, isto é, não permitem
que ele usufrua da cidade.
- Na visão do autor, qual a lógica que rege a
construção urbana nesse início de século?
Neste início de século, a lógica da
construção urbana continua sendo a ampliação do sistema viário para carros particulares,
com a construção de viadutos e ampliação das vias de acesso rápido, enquanto
que o sistema de transporte de massa, como linhas de metrô anda a passos lentos
ou inexiste.
- O autor deixa claro ou subentendido que seria
possível mudar a lógica da construção urbana na cidade capitalista? Explique.
Deixa subentendido que é possível mudar ao
citar exemplos onde foram realizadas algumas mudanças através de projetos
urbanos para construir escolas, bibliotecas, museus, corredores de ônibus e
teleféricos nas duas maiores cidades da Colômbia (Bogotá e Medelin) e dos CEUs
(Centro Educacional Unificado), construídos em São Paulo.
[1] flaneur (francês); vadio, preguiçoso.
[2] laisser faire (francês): atitude que consiste em não intervir, em deixar agir as
forças presentes.
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