sexta-feira, 7 de setembro de 2018

É A CIDADE CAPITALISTA, ESTÚPIDO!


SÃO PAULO E OS PEDESTRES
Andre Leal
Postado em:16 de Setembro de 2011


Muito tem sido falado na mídia a respeito da campanha que a CET (Cia. de Engenharia de Tráfego) de São Paulo vem fazendo há cerca de três meses em prol do respeito aos pedestres no trânsito da capital paulista. Nada mais humano, mas que vem tarde e apenas mascara que a cidade capitalista é construída para o carro – transporte individual e apropriação indevida do espaço público, como sempre afirma Paulo Mendes da Rocha, por exemplo. Nada mais falacioso poderia ser também a ideia de um “rodoviarismo humanista”, como seguradoras querem nos vender em suas campanhas publicitárias (exemplo é “Trânsito mais gentil” da Porto Seguro). O transporte individual exacerba o individualismo e a noção de propriedade privada do espaço urbano, estimulando práticas tudo menos humanistas, mesmo naqueles que sabem dos males e das necessidades de se ter um “trânsito mais gentil”. [...]
Desde as grandes reformas do século XIX a cidade passou a ser construída com objetivos diferentes: em um primeiro momento era o controle das revoltas como a Comuna de Paris que os urbanistas queriam estabelecer com as grandes avenidas que abriram em meio à cidade medieval de Paris. Já no século XX, porém a história mudou e a cidade passou a ter sua construção motivada pelo princípio de desafogar a circulação dos automóveis individuais. Se Walter Benjamin via na poesia de Baudelaire os indícios da transformação que Haussmann promovera em Paris e definia sua visão sobre a modernidade instrumental, ele não poderia imaginar o que estaria por vir. O contato do flâneur[1] com os estranhos na multidão de uma metrópole e a perda de referências do habitante em relação à sua cidade natal marcou a obra de Benjamin, levando-o a associar a experiência do cidadão urbano moderno ao que ele chamou de perda da experiência. A cidade europeia, no entanto, conseguiu manter-se como espaço propício à “experiência” do flâneur e em sua maioria equilibra com considerável êxito a relação entre o transporte individual e o coletivo. Claro que nos EUA a situação é muito diferente: cidades como Los Angeles e Miami sofrem com os engarrafamentos e a falta de transporte coletivo abrangente, e é de onde os visionários prefeitos de São Paulo tiraram ideias que levaram à construção do famigerado Elevado Costa e Silva – o Minhocão, nome mais palatável do que o do general que foi homenageado por Paulo Maluf, aliás os três (viaduto, Maluf e Costa e Silva) se merecem imensamente!
De qualquer forma, uma cidade como Brasília, construída tendo em conta “a tecnologia de plantão da época”, como diria Alexandre Delijaicov, é uma cidade extremamente rodoviarista. No começo da década passada, porém, a administração de Cristóvam Buarque conseguiu incentivar o respeito ao pedestre estabelecendo uma nova cultura em meio às superquadras de Lucio Costa. O mesmo se deu na Colômbia, onde cidades como Bogotá e Medellín se tornaram referência para diversos projetos urbanos. Lá a prefeitura associou-se a grandes empresas por meio da renúncia fiscal – instrumento célebre dos tempos “pós-neoliberais” – para construir escolas, bibliotecas, museus, corredores de ônibus e teleféricos nas duas maiores cidades do país. A exemplo dos CEUs (Centro Educacional Unificado), construídos em São Paulo pela administração Marta Suplicy na década passada, as bibliotecas e escolas se tornaram um marco arquitetônico em meio às favelas que há anos estavam à margem da cidade “instituída”. Da mesma forma no Rio de Janeiro o teleférico do morro do Alemão e o elevador do morro do Cantagalo estão tornando-se emblemas na paisagem da cidade.
Essas ações, porém, escondem algo fundamental que está por trás da lógica que rege a construção urbana nesse começo de século. Ao mesmo tempo em que a CET realiza a campanha de “conscientização do motorista”, bilhões de reais são anunciados para a construção de viadutos na cidade de São Paulo – isso sem falar no bilhão e meio investidos na Marginal Tietê, ou “sarcófago do rio Tietê”, se preferirem. Da mesma forma, essa semana foram inauguradas mais duas estações da linha Amarela (linha 4) do Metrô paulistano, em obras desde 2004.  [...] Não será muito tempo para só uma linha? E é só a Cia. do Metrô abrir mão do controle da execução das obras para os erros e acidentes acontecerem. A cratera da estação Pinheiros que abriu em 2007 por erro de análise do terreno marcou a região, tragando para dentro de si sete pessoas e interditando 93 imóveis.
[...] O estímulo ao uso do espaço urbano pelos pedestres é fundamental para a qualidade de vida de qualquer cidade. E isso passa não apenas pelo respeito dos motoristas pela faixa de pedestre, mas também pela oferta de transporte público de qualidade (e barato) e ainda outro ponto fundamental: o bom estado das calçadas. Sendo sua construção e manutenção de responsabilidade do proprietário e não da prefeitura o que acabamos encontrando na cidade é uma colcha de retalhos e remendos e verdadeiras corridas de obstáculo para os pedestres. Mais uma vez o poder público entrega a construção da cidade a agentes privados. O resultado já conhecemos na forma da maior aglomeração urbana do hemisfério que não oferece o mínimo de qualidade de vida para seus habitantes.
Há pouco tempo atrás surgiu uma expressão interessante no site Carta Maior em comentário sobre editorial da revista ultraliberal The Economist e que foi seguida por outros como o sociólogo argentino Atílio Boron. O comentário da Carta Maior era o de que em 1105 palavras do artigo sobre o aquecimento global da revista não se mencionava nenhuma vez a palavra capitalismo; sugeriam portanto um outro título ao editorial: Bem vindos ao Antropoceno: é o capitalismo, estúpido! Sugiro então para a CET que sua campanha “Respeite o pedestre” passe a chamar-se: Respeite o pedestre: é a cidade capitalista, estúpido! E São Paulo pode ser considerada exemplo da cidade laisser faire[2] capitalista.

Questões para a interpretação do texto. GABARITO:

- Qual a visão do autor sobre a cidade capitalista e a mobilidade urbana?
A partir do século XX, a cidade passou a ter sua construção motivada pelo princípio de desafogar a circulação dos automóveis individuais; pouco se faz para a ampliação e melhoria do transporte coletivo, com oferta de transporte público de qualidade (e barato). Enquanto isso, as calçadas ficam em péssimas condições, dificultando ou impedindo o acesso aos pedestres, sendo sua construção e manutenção de responsabilidade do proprietário e não da prefeitura.
- O que o autor acredita ser a experiência de um cidadão urbano moderno?
As cidades europeias ainda preservam condições equilibradas, permitindo ao cidadão urbano usufruí-las. O mesmo não se dá em grandes cidades americanas e brasileiras, com engarrafamentos e falta de transporte coletivo abrangente, onde o contato do cidadão com estranhos na multidão e a perda de referências em relação à sua cidade natal leva-o a uma perda de experiência, isto é, não permitem que ele usufrua da cidade.
- Na visão do autor, qual a lógica que rege a construção urbana nesse início de século?
Neste início de século, a lógica da construção urbana continua sendo a ampliação do sistema viário para carros particulares, com a construção de viadutos e ampliação das vias de acesso rápido, enquanto que o sistema de transporte de massa, como linhas de metrô anda a passos lentos ou inexiste.
- O autor deixa claro ou subentendido que seria possível mudar a lógica da construção urbana na cidade capitalista? Explique.
Deixa subentendido que é possível mudar ao citar exemplos onde foram realizadas algumas mudanças através de projetos urbanos para construir escolas, bibliotecas, museus, corredores de ônibus e teleféricos nas duas maiores cidades da Colômbia (Bogotá e Medelin) e dos CEUs (Centro Educacional Unificado), construídos em São Paulo.


[1] flaneur  (francês); vadio, preguiçoso.
[2] laisser faire (francês): atitude que consiste em não intervir, em deixar agir as forças presentes.

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